Ao matricular seu filho de seis anos em uma escola particular de Brasília/DF que oferece atividades de contra turno escolar, a advogada Fabiana Gadelha ficou sabendo que uma das mães exigiu que o menino não chegasse perto de sua filha por ser “negrinho”. Episódios de preconceito como esse são quase diários na vida da criança, adotada com um ano de idade por pais brancos. Apesar da resistência que ainda enfrentam na sociedade, dados no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), da Corregedoria Nacional de Justiça, mostram que a discriminação racial dos pretendentes à adoção tem caído significativamente desde 2010. A redução é constatada porque, ao se inscreverem no CNA, os futuros pais adotivos precisam responder, entre outras exigências, se possuem restrições em relação à cor da criança, ou seja, se aceitam adotar uma criança negra ou parda.
Dos 6.592 crianças e adolescentes aptos à adoção que constam no CNA atualmente, 16,99% são negras, 48,86% são pardas, 33,48% são brancas, 0,3% pertencem à raça amarela e 0,36% são indígenas. Nos últimos seis anos, o número de pretendentes que somente aceitam crianças de raça branca tem diminuído – em 2010, eles representavam 38,73% dos candidatos a pais adotivos, enquanto em 2016 são 22,56% de pretendentes que fazem essa exigência. Paralelamente, o número de candidatos que aceitam crianças negras subiu de 30,59% do CNA em 2010 para os atuais 46,7% do total de pretendentes do cadastro. Da mesma forma, o número de pretendentes que aceitam crianças pardas aumentou de 58,58% do cadastro em 2010 para 75,03% dos candidatos atualmente.
Na opinião da ministra Nancy Andrighi, corregedora nacional de Justiça do CNJ, o trabalho das Varas da Infância e da Juventude e também dos Grupos de Apoio à Adoção tem sido fundamental para que os pretendentes tenham esse desprendimento em relação à raça das crianças. “Os cursos de preparação para adoção – estabelecido pelo artigo 50, parágrafo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente – realizados pelas equipes multidisciplinares das varas ou dos municípios conseguem mostrar aos pretendentes a realidade das crianças que estão aptas a serem adotadas, fazendo com que abdiquem de idealizações pré-concebidas, notadamente as crianças brancas e com menos de três anos”, diz a ministra Nancy.
Preconceito – Apesar da queda nas exigências dos pretendentes à adoção, os pais que adotam crianças negras ainda sofrem preconceito em seu cotidiano. “Uma colega me disse outro dia que eu teria que levar o meu filho à África, para que ele tivesse contato com sua cultura”, conta a advogada Fabiana Gadelha, que é consultora da ONG Aconchego, mãe de Arthur, de seis anos, adotado com um ano. De acordo com ela, esses episódios são bastante frequentes e fizeram, inclusive, com que parasse de conversar com pessoas da família por isso. “Enfrentamos também situações de preconceito afetivo, como pessoas que dizem que ele é tão bonitinho que nem parece negro, ou então que ele vai ser jogador de futebol ou pegar todas as mulheres quando crescer”, diz Fabiana, que além de Arthur é mãe de outros dois filhos, um deles também adotivo. De acordo com a mãe, esses episódios chegam a refletir na autoestima do garoto, que por vezes questiona o fato de ser negro ou acha que seu cabelo é feio. “Todo dia é uma luta diária para empoderar meu filho para que ele não se torne vítima”, diz.
Este ano, até abril, foram feitas 252 adoções no país pelo CNA, sendo que, destas, 119 foram de crianças negras e pardas. O aumento das chamadas adoções tardias – de crianças com mais de três anos – é um dos fatores que impulsiona a adoção de crianças negras, isso porque, atualmente, das 5.918 crianças com mais de três anos no CNA, 4.005 são negras ou pardas (68%). Entre as crianças com idade entre 0 e 3 anos (não completos), 332 das 654 crianças disponíveis são negras ou pardas (cerca de 51%). Em 2010, foram feitas 114 adoções tardias (43% do total), percentual que foi crescendo, chegando a 711 em 2015, o que equivale a 50% do total de adoções desse tipo naquele ano.
Entraves legais – Na opinião da ministra Nancy, ainda existem muitos entraves legais e burocráticos num processo de definição jurídica para uma criança ser considerada disponível para adoção. “A lei estabelece que os vínculos biológicos devem ser prestigiados e os pais biológicos, ou a família extensa, devem ser consultados e preparados. Nesse período, a criança permanece acolhida e o Ministério Público fica na dúvida em propor a ação de destituição do poder familiar. Ainda temos no Brasil uma mentalidade de favorecer a família biológica em detrimento do direito da criança em ter uma família real. Temos de frisar que os tempos são diferentes para as crianças, para os adultos e para os processos. Acima de qualquer tempo, está a criança”, diz a ministra.
CNA – O Cadastro Nacional de Adoção, ferramenta digital de apoio aos juízes das Varas da Infância e da Juventude na condução dos processos de adoção em todo o país, foi lançado em 2008 pela Corregedoria Nacional de Justiça. Em março de 2015, o CNA foi reformulado, simplificando operações e possibilitando um cruzamento de dados mais rápido e eficaz. Com a nova tecnologia, no momento em que um juiz insere os dados de uma criança no sistema, ele é informado automaticamente se há pretendentes na fila de adoção compatíveis com aquele perfil. O mesmo acontece se o magistrado cadastra um pretendente e há crianças que atendem àquelas características desejadas.
Para a ministra Nancy, outro fator importante para o aumento nos índices de indiferença em relação à cor da criança é justamente a organização e a sistematização dos dados nacionais de crianças aptas à adoção e pretendentes pelo CNA. “Além de possibilitar a automação no cruzamento dos referidos dados e maior agilidade nos processos de adoção, o cadastro serve como instrumento de trabalho para as equipes multiprofissionais utilizarem nos cursos preparatórios”, diz.
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias
Fonte: Site AASP